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Heitor Freire

Da Culpa

Nós, oriundos da formação judaico-cristã, somos estigmatizados por um sentimento de culpa que nos foi inoculado subliminarmente. Nascemos condenados. Culpados.
Nascemos devendo por força do “pecado original”, que nos marca a todos como se fosse um ferro de marcar gado.
Esse sentimento foi potencializado por Santo Agostinho, o qual carregou nas tintas de tal forma que impregnou o nosso DNA espiritual.
No seu tempo, Agostinho foi contestado de uma forma bastante corajosa – já que ele era o todo-poderoso da época – por um monge bretão, Pelágio, que oriundo da Bretanha, indo conhecer Roma, insurgiu-se de forma desassombrada e firme em oposição ao pensamento agostiniano. Pelágio, pregava, já naquela época o livre-arbítrio, dizendo com todas as letras que o ser humano é livre de origem e por natureza.
A Igreja Católica sempre agiu de modo impositivo, com seus tradicionais dogmas. A Igreja sempre foi implacável com quem dela ousasse discordar. Um exemplo dos mais significativos foi o extermínio a que foram submetidos os cátaros – povo cristão que vivia no norte da Espanha e sul da França – que praticavam com pureza os ensinamentos de Jesus. E o faziam com tal consciência que suas práticas começaram a se expandir, ameaçando a dominação da Igreja. Esta, por sua vez, não teve a menor complacência com esse povo, e ordenou o aniquilamento total de velhos, jovens, adultos, homens, mulheres, crianças, bebês – um verdadeiro genocídio.
Vale lembrar também a noite de São Bartolomeu, em que aproximadamente cem mil huguenotes (protestantes) foram massacrados na França, com o apoio da Igreja.
A Igreja, hoje, se vê no meio de um redemoinho causado por sua forma imperial de agir: é o caso dos padres acusados de pedofilia. Ela procura acobertar, esconder-se, evitar o tema, mas já não consegue mais. O assunto é por demais evidente. E isso decorre exatamente da contradição entre o que se prega e o que se faz: a Igreja se diz a intérprete e representante de Deus na Terra, e ao impor o celibato incorre em erro, contrariando o mandamento divino “Crescei e multiplicai-vos”.  
A Igreja também tentou calar Lutero. Mas ele conseguiu de tal forma divulgar o seu pensamento, a sua ação, que a iniciativa católica resultou infrutífera. Pelo contrário, quanto mais combatia as idéias de Lutero, mais estas se afirmavam e se expandiam.
É interessante que os “ditos” cristãos nem sempre cumprem os ensinamentos de Jesus. Ele disse “Ouvistes o que vos disseram, Eu, porém vos digo…”, e assim pregava um novo entendimento, uma nova atitude, em face do sentimento radical e condenatório vigente à época. E que, à Sua revelia, permanece até hoje.
Essa prática existe desde os tempos de Adão, que de forma cínica e covarde, tentou se absolver perante o Senhor por seu ato de desobediência: “A criatura que me deste por companheira me deu a fruta e eu comi…” –  o que evidentemente não colou, mas estava firmando um precedente de comportamento. Desde então, o ser humano quando flagrado em culpa sistematicamente procura se isentar, chegando até os nossos dias com a desculpa presidencial: “Eu não sabia de nada”.
O que se depreende de tudo isso é que ficou claro o caráter condenatório da religião em relação ao ser humano, contrariando totalmente o ensinamento de Jesus, com cada um procurando justificar-se, eximir-se da responsabilidade de seus atos, fugindo da culpa.
Ao observar o julgamento dos Nardoni, constata-se que esse caráter condenatório predomina de forma explícita, clara e deliberadamente insuflado pela mídia que elevou o desfecho do caso a status de superprodução, com todos os elementos necessários para atingir os seus objetivos: ibope elevadíssimo.
Com raras exceções, o grande público exultou com o resultado do julgamento.
Eu não entro no mérito do acontecido. Me causa repulsa a hipótese de um pai ter cometido tal ato. Abstraindo-se o fato em si, o que mais me chamou a atenção foi a condenação do casal pela população o que, de certa forma, distraiu as pessoas das suas próprias ações.
E a grande maioria se diz cristã. Esquecendo-se de que Jesus disse: “Aquele que for isento do pecado, que atire a primeira pedra.”
Não nos compete julgar a ninguém. E como é difícil entender isso.
E como livrar-nos desses pecados que nos são imputados constantemente e os que nós mesmos cometemos? Só há um jeito: por meio do ato de remir (=adquirir de novo), da libertação que está ao nosso alcance, através da consciência dos nossos atos, palavras, ações. Não podemos mudar o que já passou, mas podemos mudar o presente e o futuro, como ensinou Chico Xavier. Depende de cada um.

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