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Heitor Freire

Nos Tempos do Mercadinho

Nos idos de 1952, meu pai, Luiz Freire Benchetrit, era proprietário do Salão Cristal, uma barbearia localizada na rua 14 de Julho, entre a Rio Branco e a Afonso Pena. Bem ali no coração da cidade, onde hoje funciona a Galeria São José.

O salão tinha uma excelente clientela, que incluía até o prefeito da época, um dos grandes médicos de Campo Grande, dr. Ary Coelho de Oliveira. Ele era atendido pelo Joaquim, um barbeiro clássico português que dividia o cabelo no meio e usava um bigodinho. O doutor Ary chegava, sempre de terno, tirava o paletó, usava guaiaca no lugar do cinto, com um revólver 38 na cintura e a cartucheira cheia de bala. Pouco depois infelizmente, ele seria assassinado em Cuiabá, em novembro daquele mesmo ano. Foi uma grande perda para a cidade. A principal praça de Campo Grande tem seu nome e uma estátua sua também.

Certo dia, meu pai resolveu mudar de ramo: vendeu o salão para o Telésforo Reis, um dos barbeiros que eram funcionários dele. E por ter recebido um pequeno negócio como pagamento de uma dívida, ele mudou de ramo e passou a ser proprietário de um mercadinho, localizado na rua 7 de setembro, entre a Rui Barbosa e a 13 de Maio. Naquela época, ali era o epicentro do baixo meretrício, que estava em pleno vigor.

O nosso mercadinho tinha uma vizinhança animada: havia uma “casa de mulheres” na frente, no lado direito e no esquerdo. Estávamos em boa companhia, e me lembro que o limite que nos separava era uma simples cerca de arame. Um pouco mais para a esquerda, havia o bilhar do Jabatá, um turco grandão com um bigode imenso.

Eu, em plena adolescência, era pau pra toda obra, e me tornei o braço direito do meu pai, e assim começamos a trabalhar juntos. O nosso “bolicho” tinha o nome de Mercadinho Popular. Era “inho” só no nome, porque a variedade de produtos era muito grande, de secos e molhados, pão quente – que eu ia buscar de bicicleta correndo para chegar quentinho, três vezes por dia na padaria Eduardo, na Dom Aquino –, frutas, legumes, verduras, elástico, retrós, agulha, linha, botão, tinha até absorvente íntimo, que naquela época era chamado de “modess”. A clientela nunca ficava na mão.

Logo fizemos amizade com toda a molecada da redondeza, que era muito legal. Eu tinha uma curiosidade muito grande a respeito do modess. Os meus amigos também. Um dia resolvemos abrir um pacote e ficamos olhando sem entender para que servia. E agora? O que fazer? Resolvemos entrar numa das casas correndo, mas deixamos o pacote aberto em cima da mesa. Dava pra desconfiar que devia ser algo muito misterioso, mas continuamos sem saber o que era.

Nas quartas-feiras e aos domingos de madrugada, por volta das 3 da matina, eu e o meu irmão Hernane acompanhávamos o papai até a feira, que ficava onde hoje é o Mercadão. O velho ficava conversando com seus amigos japoneses e nós dormíamos no carrinho, esperando por ele. Lá pelas tantas, papai fazia as compras e nós voltávamos com o carrinho bem carregado de frutas, verduras, legumes e muita mandioca. Me lembro que era bem pesado, e íamos a pé empurrando o carrinho até o nosso mercadinho bem antes do sol nascer.

A mandioca que não era vendida era enterrada numa cova para se conservar fresquinha na umidade da terra. Aí acontecia algo que nos deixava bem bronqueados. Aos domingos, depois do almoço, já de banho tomado, com os cabelos cintilando de tanta brilhantina, estávamos prontos para ir ao Cine Alhambra, assistir à matinê da semana. Invariavelmente, antes da gente sair de casa, chegava uma guria, paraguaia, que pedia meio quilo de mandioca. Que estava enterrada. Papai nos ensinou que cliente não tem tamanho. Lá íamos eu e o Hernane desenterrar a bendita mandioca para vender meio quilo, tentando não sujar a roupa nem se despentear por causa do calorão. Todo domingo era a mesma história.

E a guria não vinha de manhã, parecia fazer de propósito. Certa vez, resolvemos deixar meio quilo já desenterrado. Aí chegava a guria e pedia 1 quilo! Fuzilávamos a menina com o olhar. Não era possível! E quando a filha da mãe não vinha? Saíamos de mansinho para a matinê, e o papai sempre atento, nos fazia enterrar a mandioca que tínhamos deixado de fora. Não tinha jeito. Era a nossa sina.

Hoje, naturalmente, acho muito engraçado, mas naquela época era motivo de muita bronca com a guria. Bronca silenciosa, bem entendido.

No mercadinho, vendíamos também por atacado. Eu saía de bicicleta para anotar os pedidos dos comerciantes da periferia e depois ia entregar a mercadoria de charrete, que eu mesmo conduzia. Quando quebrava a charrete, eu montava no cavalo, em pelo, e voltava para casa. Chegava com a bunda toda queimada.

No final da Avenida Bandeirantes, tinha um comerciante já de certa idade, casado com uma mulher mais nova e muito bonita, que atendia com ele no balcão. Era o Seu Neco. Ele usava revólver na cintura e vivia olhando feio pra todo mundo, por causa da mulher dele. E a gente ficava olhando meio de lado, disfarçando, para ele não perceber. Se não, era bronca na certa. E, claro, eu não queria perder o cliente, mas também não podia deixar de dar uma olhadinha. Era engraçado – e um tantinho perigoso.

Nessa época, me aconteceu algo interessante que só pude entender mais de quarenta anos depois. Eu estava no banheiro fazendo pipi, – quem faz xixi é mulher –.  e olhando para o meu pinto. Notei que alguma coisinha me incomodava. Meti a unha e cortei a membrana. Me lembro que ardeu muito. Só depois de muito tempo é que entendi que, sem a menor cerimônia, eu havia me circuncidado. E então me dei conta de que possivelmente eu tenha encarnado como judeu em outras vidas.

Nos tempos do mercadinho…

Heitor Rodrigues Freire, hoje com reminiscências de um passado alegre.

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