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Heitor Freire

Das coisas II

DAS COISAS II
No artigo da semana passada, DAS COISAS, tratei de um tema que obtive por indicação de uma amiga, e informei que era de autoria desconhecida. Mas depois soube por uma outra amiga, Marisa Nachif, publicitária e designer, que o autor do texto que citei é Francicarlos  Diniz, jornalista, paraibano (tinha que ser nordestino), e o tal trecho consta no seu primeiro livro “Coisas do Português”.
Francicarlos, por si só já é uma prova do sistema que os nordestinos adotam, de modo geral, juntando nomes ou inventando com a junção do nome do pai com o da mãe. Eu tinha um amigo, recentemente falecido, o Raiman, cujo nome era uma criativa fusão de Raimunda com Manoel, nomes de seus pais. E olha que seu Manoel era baiano, mas o nome do Raiman soava como se fosse estrangeiro.
Como todos sabemos, os nordestinos são de uma inteligência e de uma criatividade fora do comum. Se fôssemos citar os que se destacaram na história, faltaria tinta e papel para registrar todos eles. Só para mencionar alguns, a voo de pássaro, me lembro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Renato Aragão, Chico Anísio, Fagner. Gil e Caetano, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Gilberto Freyre e muitos outros que não cito por falta de espaço.
Agora, por uma questão de justiça e de princípio, me vejo na circunstância de retificar a minha informação anterior, para mais uma vez aqui reforçar o nome do autor, Francicarlos Diniz, merecidamente. Segundo o crítico Antonio Miranda, “Francicarlos é um poeta minimalista, descontrói e descontrói os versos, não raras vezes, com a visão/versão de um concretista”.
Como o texto é longo, aproveito esta retificação para deleitar nossos leitores com mais algumas passagens deliciosas:
“O substantivo ‘coisa’ assumiu tantos valores que cabe em quase todas as situações cotidianas.
A natureza das coisas: gramaticalmente, ‘coisa’ pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma ‘coisificar’. E no Nordeste há ‘coisar: ‘Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?’.
Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as ‘coisas’ nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. ‘E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios’ (Riacho Doce, José Lins do Rego).
Na literatura, a ‘coisa’ é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.
Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta ‘Alguma coisa acontece no meu coração’, de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).
Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim! Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o personagem ‘Coisinha de Jesus’.
Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, ‘coisa nenhuma’ vira ‘coisíssima’.
Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.
Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: ‘Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente’. E, no verso do poeta, ‘coisa’ vira ‘cousa’.
Mas, ‘deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida’, cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda.
Entendeu o espírito da coisa?
Se não entendeu, desculpe qualquer coisa”.
Fica registrada a minha admiração e a minha gratidão ao talento de Francicarlos Diniz,que é autor também de “Moinho de Inventos (O livro das ruminâncias)”, que deve ser outro livro delicioso de se ler.
Para finalizar: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia” (Shakespeare).
Mas que coisa!
Heitor Rodrigues Freire – Corretor de imóveis e advogado.

No artigo da semana passada, DAS COISAS, tratei de um tema que obtive por indicação de uma amiga, e informei que era de autoria desconhecida. Mas depois soube por uma outra amiga, Marisa Nachif, publicitária e designer, que o autor do texto que citei é Francicarlos  Diniz, jornalista, paraibano (tinha que ser nordestino), e o tal trecho consta no seu primeiro livro “Coisas do Português”.

Francicarlos, por si só já é uma prova do sistema que os nordestinos adotam, de modo geral, juntando nomes ou inventando com a junção do nome do pai com o da mãe. Eu tinha um amigo, recentemente falecido, o Raiman, cujo nome era uma criativa fusão de Raimunda com Manoel, nomes de seus pais. E olha que seu Manoel era baiano, mas o nome do Raiman soava como se fosse estrangeiro.

Como todos sabemos, os nordestinos são de uma inteligência e de uma criatividade fora do comum. Se fôssemos citar os que se destacaram na história, faltaria tinta e papel para registrar todos eles. Só para mencionar alguns, a voo de pássaro, me lembro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Renato Aragão, Chico Anísio, Fagner. Gil e Caetano, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Gilberto Freyre e muitos outros que não cito por falta de espaço.   

Agora, por uma questão de justiça e de princípio, me vejo na circunstância de retificar a minha informação anterior, para mais uma vez aqui reforçar o nome do autor, Francicarlos Diniz, merecidamente. Segundo o crítico Antonio Miranda, “Francicarlos é um poeta minimalista, descontrói e descontrói os versos, não raras vezes, com a visão/versão de um concretista”.

Como o texto é longo, aproveito esta retificação para deleitar nossos leitores com mais algumas passagens deliciosas: 

“O substantivo ‘coisa’ assumiu tantos valores que cabe em quase todas as situações cotidianas.

A natureza das coisas: gramaticalmente, ‘coisa’ pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma ‘coisificar’. E no Nordeste há ‘coisar: ‘Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?’.Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as ‘coisas’ nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. ‘E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios’ (Riacho Doce, José Lins do Rego). 

Na literatura, a ‘coisa’ é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.

Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta ‘Alguma coisa acontece no meu coração’, de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).

Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim! Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o personagem ‘Coisinha de Jesus’.

Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, ‘coisa nenhuma’ vira ‘coisíssima’. 

Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.

Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: ‘Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente’. E, no verso do poeta, ‘coisa’ vira ‘cousa’.

Mas, ‘deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida’, cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda.

Entendeu o espírito da coisa?

Se não entendeu, desculpe qualquer coisa”.

Fica registrada a minha admiração e a minha gratidão ao talento de Francicarlos Diniz,que é autor também de “Moinho de Inventos (O livro das ruminâncias)”, que deve ser outro livro delicioso de se ler.

Para finalizar: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia” (Shakespeare).

Mas que coisa! 

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